População de Roraima cresce no ritmo da entrada de venezuelanos e pressiona políticos
A chegada diária de centenas de imigrantes e refugiados venezuelanos que buscam fugir da crise econômica e do regime ditatorial de Nicolás Maduro na Venezuela tornou Roraima, o Estado menos populoso da federação, naquele em que a população tem crescido em ritmo mais acelerado.
O cenário, mesmo sete anos depois, ainda é desafiador: falta de vagas em creches, demora nas unidades de saúde diante da demanda crescente, população em situação de rua – algo até então incomum para uma capital com ares de interior -, aumento da criminalidade e pressão para que os candidatos a prefeito ampliem atendimento aos serviços públicos.
Aos poucos, porém, Boa Vista tem se acostumado a esta nova realidade. Se a chegada dos venezuelanos foi um dos principais temas da eleição de 2020, desta vez o assunto passa à margem da disputa, mais focada em obras e na suposta falta de investimentos na periferia.
A Operação Acolhida, parceria do governo federal com ONGs internacionais, construiu abrigos para dar suporte àqueles que chegam sem estrutura ou recursos à capital. A tensão entre brasileiros e venezuelanos, mais comum nos primeiros anos, diminuiu e os casos de xenofobia são raros. Grande parte dos trabalhadores do setor de serviços, como garçons, caixas de supermercados e vendedores de lojas, veio do país vizinho.
Condições precárias
Autoridades locais indicam que há pelo menos 60 mil imigrantes morando na cidade, grande parte em situação precária. A região no entorno da rodoviária interestadual, onde fica o maior abrigo construído, tornou-se um acampamento a céu aberto. Roupas estendidas em varais improvisados no meio da calçada, crianças correndo na beira de avenidas, jovens dormindo em pontos de ônibus e barracas improvisadas e redes penduradas em marquises de lojas que já não abrem mais. Pequenos grupos também se espalham por outros bairros.
Boa Vista é a segunda cidade brasileira que proporcionalmente mais cresce em número de habitantes. Fica atrás apenas de Pacaraima, no norte de Roraima, porta de entrada dos venezuelanos no país, conectada à capital por 200 quilômetros de uma esburacada estrada, parte asfaltada, parte de terra. Desde junho, mais de 31 mil venezuelanos atravessaram a fronteira com o Brasil na esperança de melhores condições de vida. Após receberem documentação de residente temporário ou refugiado, a maioria deles vai para a capital roraimense. Uma parte, menor, vai para outras cidades brasileiras para ficar próximo de parentes ou caso consiga um emprego.
‘Tratamento privilegiado’ e xenofobia
Cerca de 413 mil pessoas moravam no município em 2022, segundo o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Hoje, de acordo com estimativas da instituição, já são 470 mil. Os números não são totalmente comparáveis por adotarem metodologias distintas, mas apontam para o crescimento causado pela imigração.
“Temos o efeito direto, que é a chegada de mais pessoas, mas também um efeito indireto, porque as faixas etárias mais propensas a migrar também são aquelas no período reprodutivo”, explica o gerente de Projeções e Estimativas Populacionais do IBGE, Marcio Minamiguchi.
Embora sejam no máximo 15% da população de Boa Vista, os venezuelanos mantêm a tradição de terem grandes famílias e seus filhos são 25% dos partos na rede estadual. Segundo a prefeitura, a maternidade local é a em que mais nascem bebês no país.
Ouve-se, aqui e acolá, críticas sobre uma piora na educação, saúde e segurança públicas por causa desse aumento populacional. Atualmente, 20% dos alunos nas escolas municipais são venezuelanos, as creches não dão conta do número de crianças e 40% dos atendimentos médicos na rede estadual são para os novos moradores – a Secretaria de Saúde do Estado (Sesau) aponta gastos de R$ 287 milhões desde 2017 com cirurgias e consultas, numa tentativa de pressionar o governo federal a ampliar os repasses.
“Se tiver mil vagas nas escolas, as mil vão para os venezuelanos, que têm prioridade sobre os brasileiros”, queixa-se o deputado estadual Idazio Lima (MDB), o “Idazio da Perfil”, enquanto aguarda uma reunião com o prefeito. Ele era vereador quando a Câmara Municipal aprovou a criação de filas separadas para brasileiros e venezuelanos.
“O Ministério Público me chamou e mandou retirar [a lei] porque era ilegal, mas o governo do Estado e a prefeitura não têm condição de arcar com esses custos”, diz.
O prefeito de Boa Vista, Arthur Henrique (MDB), explica que não há prioridade para os venezuelanos, mas que ONGs e organismos internacionais que os acolhem na chegada entram com ações judiciais para que tenham garantia de vaga para os filhos.
“As creches não estão universalizadas. O PNE [Plano Nacional de Educação] prevê que apenas em 2030 as cidades tenham vagas para 100% das crianças. Então, sim, uma decisão judicial dessas acaba por furar a fila – que tem crianças brasileiras, mas também venezuelanas à espera de vaga”, afirma.
Henrique diz que a xenofobia diminuiu muito em relação ao período inicial, pré-pandemia, quando havia agressões a membros da nova comunidade e um clima de maior tensão, mas até hoje há cobranças sobre o tratamento “privilegiado” a estrangeiros.
“A percepção da população é que o imigrante está tendo acesso aos serviços da prefeitura e os brasileiros, não”, comenta.
Ele conta que fez um intercâmbio com outros países em situação parecida e os estrangeiros se surpreenderam.
“No Brasil, a lei diz que quem reside no território tem direito aos serviços públicos. Na Jordânia, por exemplo, só quem nasceu ou tem cidadania lá tem esse direito. Para os refugiados, isso é custeado pelos organismos internacionais”, afirma. “É difícil dizer qual modelo é o certo e qual é o errado, mas com certeza aqui deveria haver um apoio desses organismos também para o custeio dos serviços”, afirma.
Para o advogado Victor Del Vecchio, especialista em imigração e direitos humanos, a xenofobia arrefeceu porque os roraimenses entenderam que os venezuelanos saíram por graves dificuldades em seu país.
“Mesmo a pessoa mais reacionária, mais anti-imigração, entende que o venezuelano vem para o Brasil fugindo do regime madurista, de uma perseguição. Que não são ladrões ou drogados, mas pessoas passando necessidades”, explica.
600 venezuelanos presos
Outra cobrança sobre os políticos locais é o aumento da criminalidade durante esse período de imigração. Há quase 600 venezuelanos presos na penitenciária local e o governo estuda abrir uma nova ala. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, a cidade registrou 94 mortes violentas intencionais ano passado, ante 57 em 2016.
Ocorreram 69 homicídios em 2023 e 51 em 2016. Os latrocínios (assassinato para roubar algo) passaram de três para seis. A taxa de estupros dobrou e Boa Vista hoje é a terceira cidade do país com maior índice desse crime. Há que se considerar, em todos esses casos, que também houve aumento no tamanho da população nesse período e que os crimes não estão necessariamente ligados aos venezuelanos.
“É inegável o aumento. Mas é bom destacar e não generalizar dizendo que ‘é o imigrante’. É a comunidade afetada [pela imigração]. Também pode ser o brasileiro que perdeu seu emprego. Hoje, o garçom brasileiro não compete com o garçom venezuelano, ele compete com o engenheiro e o médico venezuelanos por um emprego no restaurante”, diz o prefeito, que ressalta também a alta de furtos de fios de eletricidade, bicicletas e até placas de trânsito.
O senador Hiran Gonçalves (PP-RR) critica o governo brasileiro por, segundo ele, não fiscalizar de forma mais rígida a fronteira. Com a dificuldade de obtenção de documentos na Venezuela e a repressão da ditadura, parte dos imigrantes chega ao Brasil sem documentos.
“Nestes casos, é aceita a autodeclaração. Ele pode dizer um nome e idade qualquer e, pronto, nasceu uma nova pessoa. A polícia não tem dados e põe a população em risco com isso”, diz. Procurada, a Polícia Federal, responsável pela fiscalização, não se manifestou.
Temas de campanha
Na eleição municipal passada, a imigração esteve entre os principais temas da eleição. Dois candidatos acusaram a ex-prefeita Teresa Surita (MDB) por “privilegiar” os venezuelanos e prometeram restringir o direito deles para priorizar o atendimento aos brasileiros – o que contraria a Constituição Federal e a Lei de Imigração. Foram acusados de xenofobia pelos novos moradores e viraram alvo de investigação pelo Ministério Público Federal.
Nesta campanha, os temas em discussão estão mais voltados a investimentos na cidade e à aliança de cada grupo político. Um dos dois acusados de xenofobia na eleição passada, o deputado federal Antônio Nicoletti (União-RR) concorre novamente à prefeitura, mas desta vez passa mais tempo tentando viabilizar a candidatura, que é contestada na Justiça pelo próprio partido.
Presidente do diretório municipal, Nicoletti registrou a própria candidatura, enquanto o diretório nacional lançou a deputada estadual Catarina Guerra (União), aliada do governador Antonio Denarium (PP) e que explora a imagem dele na eleição.
“A cidade nunca teve um prefeito alinhado ao governo estadual. Precisamos dessa parceria”, diz ela, que, por enquanto, é a candidata com base em uma liminar.
A disputa atrasou a chapa de oposição e deu mais força ao prefeito, admitem aliados do governador. Na pesquisa do instituto Quaest divulgada na terça-feira, Arthur Henrique tem 56% das intenções de voto e seria eleito no primeiro turno, mas perdeu apoio desde 27 de agosto, quando registrava 65%. Catarina pontua 19% e Nicoletti, 2%.
Também concorrem Mauro Makashima (PV) e Lincoln Freire (Psol), ambos com 1%. Foram ouvidos 704 eleitores entre 14 e 16 de setembro. A margem de erro é de 3,7 pontos percentuais, com nível de confiança de 95% (registro RR-08408/2024).
Com informações do Valor Econômico