Justiça acolhe parecer do MPF e mantém restrição noturna no trecho da BR-174 na Terra Indígena Waimiri-Atroari
Um parecer do Ministério Público Federal (MPF) foi acolhido pela Justiça em sentença que determina a manutenção da corrente no acesso à BR-174, durante o período das 18h às 6h, no trecho que corta a Terra Indígena (TI) Waimiri-Atroari, situada nos estados do Amazonas e Roraima. O objetivo da restrição é impedir o trânsito de carros e caminhões como proteção aos indígenas e animais de hábito noturno. Ônibus coletivo interestadual, caminhões com carga perecível e ambulâncias têm a passagem permitida mesmo durante o bloqueio. As informações foram divulgadas pelo MPF nesta sexta-feira (27).
A decisão foi proferida pelo Juízo da 1ª Vara Federal Cível da Seção Judiciária em Roraima, após análise de ações contra a União, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e os indígenas Waimiri-Atroari, para que se abstivessem de bloquear a BR-174, no trecho que atravessa a terra indígena. O Estado de Roraima, um dos autores das ações, havia argumentado, entre outras coisas, que a faixa de domínio da rodovia, no trecho da TI, não se encontra contida na reserva, mas a Justiça considerou que tal previsão está expressa no decreto de criação da TI e extinguiu o processo em relação a esse pedido.
A restrição de circulação de veículos e pessoas na BR-174, na parte incidente na TI, ocorre sob a coordenação da Funai e execução com a colaboração da Associação Comunidade Indígena Waimiri-Atrori, por meio dos Postos Indígenas Jundiá, Atroari, Terraplanagem e Abonari, sendo que o primeiro e o último posto – Jundiá (RR) e Abonari (AM) – localizam-se nos limites da entrada e saída da terra indígena.
Mecanismo de defesa
Para o MPF, o uso da corrente é a melhor maneira de proteger o povo Waimiri-Atroari. “A imposição de regras quanto aos horários de circulação de determinados veículos na BR-174 não viola princípios constitucionais ou valores consagrados pela ordem jurídica, acarretando tão só a alteração da programação nos horários de saída e chegada, pela via terrestre, entre os estados de Roraima e do Amazonas.”
Conforme a sentença, as restrições impostas significam não só um mecanismo de defesa da população indígena afetada, mas um meio de afirmar e preservar a própria identidade daquele povo. A Constituição Federal confere aos indígenas direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, sendo reconhecidos sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, competindo à União demarcá-las, protegê-las e fazer respeitar todos os seus bens.
Desse modo, são terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. A área destinada à Terra Indígena Waimiri-Atroari foi homologada pelo Decreto nº 97.837, de 1989.
Ações tramitavam há 20 anos
As ações que motivaram a decisão judicial tramitam na Justiça Federal desde 2004. Inicialmente, um senador da República pelo estado Roraima representou contra a União e a Funai questionando o bloqueio da rodovia. A outra foi protocolada em 2008, pelo governo de Roraima, que mencionava, além das instituições federais, o estado do Amazonas. Com exceção do ex-senador, os demais autores dos processos foram condenados, na terça-feira (24), ao pagamento de R$ 10 mil e honorários periciais. Ainda cabe recurso da decisão.
União e Funai sustentaram a legalidade da corrente e a compatibilidade dos direitos constitucionais dos indígenas. Por sua vez, o Amazonas se defendeu ao dizer que o temor dos Waimiri-Atroari é plenamente justificável e que a liberação da via, de forma indiscriminada, poderia lhes causar intranquilidade. Em setembro de 2023, todos os citados participaram de uma audiência de conciliação, que terminou sem acordo, de forma que as ações seguiram o trâmite processual legal.
Da violência sofrida
Os Waimiri-Atroari têm uma história marcada por violações de seus modos de vida e impedimentos ao exercício livre de sua identidade. Trata-se de um povo que se autodenomina Kinja (gente) e que fala a língua Karib. Vivem em uma região que se situa na divisa dos estados do Amazonas e Roraima. A construção da BR-174, no trecho entre Manaus (AM) e Boa Vista (RR), e suas consequências para o povo Waimiri-Atroari são alguns dos tristes episódios da história recente do país. A obra foi realizada durante o período de 1968 a 1977.
De acordo com a sentença, um laudo antropológico, elaborado no curso do processo, registra que, no período da construção da rodovia, o povo Waimiri-Atroari entrou num processo de desestruturação sem precedentes. O documento informa que as ações militares contra os indígenas e as doenças transmitidas pelos construtores da rodovia (gripe, sarampo e outras) reduziram de forma substancial sua população, cuja estimativa era de 1.500 indígenas, no ano de 1971, para 374 indígenas, em 1986.
A Comissão Nacional da Verdade, instituída pelo governo brasileiro para apurar os fatos referentes ao período entre 1946 e 1985, concluiu pela morte de 2.650 indígenas Waimiri-Atroari durante a construção da rodovia.
Obras da BR-174
A construção da rodovia, que perdurou entre os anos de 1968 e 1977, compunha o projeto de integração territorial daquela época, cujo objetivo era promover a ocupação das terras pelo interior do país. Teve início pelo Departamento Nacional de Estradas de Rodagens (DNER), sucedido pelo Exército Brasileiro com a colaboração da Funai, objetivando minimizar seus impactos junto à comunidade indígena.
O relato histórico da construção da rodovia é marcado pelo sofrimento impingido ao povo indígena Waimiri-Atroari, que foi vítima de diversas formas de violações: do seu modo de vida, do seu espaço territorial tradicionalmente ocupado e do próprio exercício de sua identidade, sendo levados quase à completa extinção.
Reparação de dano
Visando à reparação dos danos provocados pelo projeto de construção da BR-174, o MPF ajuizou a Ação Civil Pública nº 1001605-06.2017.4.01.3200, que tramita na 3ª Vara Cível da Seção Judiciária do Amazonas, na qual pleiteia, entre outros pedidos, a condenação da União na obrigação de pagar indenização no valor de R$ 50 milhões pelos massacres que ocorreram durante as obras. A ação também requer um pedido oficial de desculpas e a inclusão do estudo das violações dos direitos humanos dos povos indígenas durante a ditadura militar, com destaque ao genocídio do povo Waimiri-Atroari, no conteúdo programático dos estabelecimentos de ensino médio e fundamental.