Levantamento aponta falhas na proteção infantil e coloca Boa Vista como uma das cidades com maior índice de violência contra crianças

A efetividade das ações e políticas públicas do Sistema de Garantias de Direitos para Crianças e Adolescentes Vítimas ou Testemunhas de Violência (SGDCA), do governo federal, foi examinada por um levantamento nacional e revelou um cenário preocupante sobre a proteção infantil no Brasil: o sistema falha em proteger a infância. O levantamento, que faz parte do Projeto Infância Segura, foi realizado pela Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon), com a participação ativa de vinte tribunais de contas, incluindo o Tribunal de Contas de Roraima (TCE-RR).

Os dados revelam pontos críticos como alto risco de revitimização, ausência de plano estadual específico para prevenção e enfrentamento da violência contra crianças e adolescentes, além da subnotificação dos casos de violência e da ausência de integração entre os órgãos que fazem parte do SGDCA.

Para o conselheiro Edilson Silva, presidente da Atricon, a interação com entidades da sociedade civil, órgãos públicos federais, estaduais e municipais foi uma das razões para garantir que o levantamento refletisse de maneira precisa e abrangente a realidade administrativa e operacional das políticas analisadas. 

“Esta iniciativa reflete um esforço coletivo e colaborativo voltado à melhoria da gestão pública e ao fortalecimento das políticas públicas em prol de um tema tão sensível e relevante,” explica.

Principais deficiências

Os dados nacionais apontam como as principais deficiências a ausência de integração e coordenação entre os órgãos do SGDCA, o problema de continuidade das políticas relacionadas ao tema e a inexistência de ciclos periódicos de avaliação e monitoramento na maioria dos planos estaduais existentes. O documento evidencia ainda a falta de estrutura e destinação de recursos adequados para a execução das políticas e a ausência de um sistema unificado e seguro para o compartilhamento de informações, o que torna a rede de proteção mais vulnerável a falhas de comunicação, duplicidade de informações e a perda de dados importantes para o acompanhamento dos casos.

Boa Vista entre as 50 cidades com maior índice de violência infantil 

O levantamento faz referência aos dados do anuário do Fundo Nacional da Segurança Pública (FNSP) divulgado em 2024, referentes a 2023, e que coloca Boa Vista entre as 50 cidades com maior incidência de estupro, na faixa etária entre 0 e 14 anos. O ranking é liderado pela cidade de Sorriso (MT), seguida de Porto Velho (RO), Boa Vista (RR) e Itaituba (PA), esta última no Marajó. Segundo o relatório, isso revela a falta de abrangência por parte dos programas conduzidos pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) para o combate da violência infantil, que tem ação localizada na região marajoara. 

“Essa abordagem restrita, apesar de importante para o local em questão, pode fragilizar a situação de outras áreas igualmente críticas e com altos índices de violência infantil. A falta de abrangência do programa não apenas deixa vulneráveis milhares de crianças em regiões que igualmente demandam atenção, mas também pode criar uma percepção de que a proteção infantil é seletiva, pautada por pressões de visibilidade e não pela real extensão do problema”, aponta o relatório nacional. 

Recomendações 

O relatório elenca uma série de recomendações aos Poderes Executivos federal, estaduais e municipais, que vão desde a revisão do modelo de planejamento e gestão setorial e intersetorial, estabelecimento de fluxos, implementação de ações até a adoção de medidas urgentes para ampliar e qualificar a oferta de serviços assistenciais. 

Em especial, destaca-se a que diz respeito à implantação dos centros de referência ao atendimento infantojuvenil, na capital e em regiões de relevância. Isso porque, dos 20 estados partícipes do levantamento, apenas nove contam com Centros de Atendimento Integrado, compostos por equipes multidisciplinares especializadas: Ceará, Rio de Janeiro, Pará, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Santa Catarina e Tocantins. 

Dados de Roraima

O Tribunal de Contas de Roraima participou ativamente do levantamento. A coleta de informações ocorreu entre setembro e outubro de 2024 em 14 unidades jurisdicionadas, e os dados locais servirão de base para articular ações coordenadas, orientar auditorias e monitorar a evolução das políticas públicas nos municípios. É o que esclarece Valdélia Lena, auditora de Controle Externo e secretária de Avaliação e Monitoramento de Políticas Públicas da instituição.

“Apesar do empenho dos profissionais da rede de proteção, o levantamento permitiu identificar vulnerabilidades, analisar se as políticas públicas estão sendo eficazes em garantir esses direitos, além de permitir aos gestores, por meio das recomendações do tribunal, direcionar ações e recursos para áreas específicas, que necessitam de melhorias”, conclui.

Fragilidades da rede de proteção

No levantamento estadual, foi constatado que a efetividade das políticas públicas de proteção demanda uma governança mais estruturada e colaborativa para fortalecer a capacidade de resposta do Estado, frente à problemática da violência contra crianças e adolescentes. No relatório, destacam-se ainda que a ausência de um plano estadual específico de prevenção e enfrentamento da violência, de dotações orçamentárias dedicadas e de integração entre os sistemas utilizados pelos participantes do SGDCA, são lacunas que fragilizam a rede de proteção. Outros problemas que também foram identificados:

Governança:

faltam orientações do Estado para ajudar os municípios a organizarem o fluxo de atendimento das crianças e adolescentes que sofreram ou presenciaram violência;

o Estado ainda não regulamentou as normas relativas à proteção de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência (Lei nº 13.431/2017);

Prevenção:

o poder público estadual não estabeleceu matriz intersetorial de capacitação (descumpriu Decreto Federal nº 9.603/2018, art. 27, parágrafo único).

Enfrentamento e acolhimento:

a Polícia Militar de Roraima não possui procedimento operacional padrão (POP) que estabeleça regras sobre o atendimento de ocorrências envolvendo crianças e/ou adolescentes;

em Roraima, não é aplicado fluxo de atendimento diferenciado para crianças e adolescentes pertencentes a povos e comunidades tradicionais;

não há pelo menos um advogado em todos os Centro de Referência Especializado da Assistência Social (Creas) para assistência jurídica qualificada;

não há Centro Integrado de Atendimento para casos de violência contra crianças e adolescentes.

Audiências de articulação

Buscando articular esforços para aprimorar as ações de governança, a articulação intersetorial e a infraestrutura do SGDCA em Roraima, o TCE-RR promoveu audiências em 12 e 13 de maio, com os principais atores do sistema, entre eles o procurador-geral de Justiça, Fábio Stica, o presidente do Tribunal de Justiça, desembargador Leonardo Cupello, além dos chefes do Sistema de Segurança Pública do Estado de Roraima (Secretaria de Estado da Segurança Pública, Delegacia Geral, Comando da Polícia Militar e Conselhos Tutelares). Os resultados foram apresentados pelo auditor de Controle Externo, Antônio Marques, que esteve à frente do levantamento em campo. 

O presidente do TCE-RR, Brito Bezerra, o ouvidor, Manoel Dantas, a presidente da Escola de Contas, Simone Souza e a coordenadora do Grupo de Trabalho da Primeira Infância no TCE-RR, Cilene Salomão, participaram das audiências reforçando o compromisso da Corte de Contas com a temática.

A intenção, conforme explicou a conselheira, não é apenas apresentar os principais problemas encontrados no levantamento, mas, principalmente, sensibilizar os gestores para a busca de soluções conjuntas, especialmente no que diz respeito à criação e coordenação de um Centro de Atendimento Integrado.