Roraima corre risco de ficar às escuras com interdição de áreas de exploração de gás no Amazonas

O Ministério Público Federal (MPF) recomendou à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) a interdição de áreas no Amazonas que abrigam empreendimentos de pelo menos R$ 6 bilhões de gás e petróleo, sob o pretexto da presença de grupos isolados. A interrupção afetaria Roraima, cuja matriz energética depende da usina térmica Jaguatirica II, abastecida pelo gás natural extraído no município amazonense de Silves, que compreende o igarapé Caribi.

Com a suspensão da exploração, 70% da energia elétrica do Estado, que não é interligado ao Sistema Nacional (SIN), ficariam comprometidos.

A recomendação foi assinada pelos procuradores Fernando Merloto Soave, Eduardo Jesus Sanches e Daniel Luís Dalberto e oficializada em 14 de novembro.

A interdição interromperia a exploração de gás, madeira e outras atividades econômicas na região com reflexo à vida econômica dos municípios de Silves (12.404 habitantes) e Itapiranga (17.149 habitantes), este último também no Amazonas.

Outra consequência seria a alteração da rotina das rodovias AM-330 e AM-363, que cortam essas localidades, comprometendo a logística regional e que, por extensão, afetaria Roraima, comprometendo o abastecimento da usina térmica Jaguatirica II, abastecida pelo gás natural extraído em Silves.

Versões

De acordo com o MPF, a medida é fundamentada nos princípios da prevenção e da precaução necessários para garantir a sobrevivência dos povos indígenas isolados, especialmente diante de sua vulnerabilidade epidemiológica e cultural.

Relatos de uma organização não governamental, assim como artefatos atribuídos a indígenas isolados, foram apresentados como provas de sua presença, ainda que a Funai, em uma expedição, não tenha constatado evidências definitivas.

A recomendação também destaca que a Funai deve exercer seu poder de polícia para restringir o acesso de terceiros às áreas identificadas e adotar medidas administrativas para proteger os indígenas isolados.

O pedido para que a Funai faça “imediata interdição” da área com possível presença de indígenas isolados —que não estão em contato com não indígenas ou com outros indígenas—, na região do igarapé Caribi e afluentes, cita potenciais riscos ao grupo avistado.

O instrumento a ser usado, conforme o MPF, é a edição de uma portaria de restrição de uso. O tema já é tratado dentro da Funai. Os procedimentos ainda estão em curso e não há previsão de quando uma portaria do tipo seria editada.

As portarias de restrição de uso servem para proteção dos indígenas e dos territórios até a demarcação. Assim, oficialmente, fica vedada a entrada ou circulação de pessoas que não sejam da Funai.

‘Elemento frágil’

O empreendimento de óleo e gás é o maior a cargo de uma empresa privada —a Eneva— em campos que não estão no mar, mas em terra. A Eneva faz avançar em ritmo acelerado a exploração de combustíveis fósseis na Amazônia brasileira, mais especificamente no leste do Amazonas.

A área onde houve avistamento de indígenas isolados, conforme registros levados em conta pela Funai, é alvo de manejo de madeira, a cargo da empresa Mil Madeiras Preciosas, segundo a recomendação do MPF.

A exploração de poços de gás e óleo é feita em outras áreas que também atendem à exploração madeireira pela Mil Madeiras.

Procurada pela reportagem, a Eneva afirma que a Procuradoria age para impedir o empreendimento baseada em “elemento frágil”. A Mil Madeiras, por sua vez, diz não acreditar na existência de indígenas isolados nas áreas onde a empresa atua há 30 anos. Também contatada desde a quinta-feira (21), a Funai não comentou até a publicação deste texto.

Em nota à reportagem, a Eneva afirma que o MPF move ações “para interromper as operações do empreendimento Azulão” desde 2021. No entanto, a empresa venceu na Justiça porque “cumpre e supera as normas legais aplicáveis”.

Para a Eneva, “a suposta prerrogativa de presença de indígenas isolados nesta região, que é altamente antropizada, não tem lastro em nenhuma documentação oficial”.

A empresa destaca que garante cerca de 70% do abastecimento de energia elétrica de Roraima, que não é integrado ao Sistema Interligado Nacional, e que “apenas suposto avistamento realizado recentemente por integrantes de organização não governamental é elemento frágil para justificar a interrupção de operações”.

A Eneva, companhia com faturamento bilionário e que tem BTG Pactual, Cambuhy, Dynamo, Atmos e Partners Alpha em sua estrutura societária, aluga terrenos de agricultores na região de Silves e Itapiranga para sua atividade.

Esses agricultores dizem ter perdido sossego e espaço em troca de preços baixos do aluguel. A Eneva afirma pagar valores acima dos praticados no mercado.

Há também conflitos com indígenas muras na região do chamado campo Tambaqui. Quatro poços estão em território reivindicado por famílias muras para a demarcação da Terra Indígena Gavião Real.

A Eneva afirma que não foram identificadas terras indígenas a menos de 25 quilômetros dos empreendimentos. “Foram consideradas todas as terras descritas nas bases de dados da Funai.”

Um representante da Eneva disse, em agosto de 2023, em reunião com o MPF, que “a Funai precisa dizer onde estão os indígenas”.

Com informações da Folha de S. Paulo/Fato Amazônico